Capítulo 1 - Um Refúgio no Paraíso

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Capítulo 1
Dois anos depois.
São Petersburgo, Rússia.

Deveria ter sido uma missão simples. A equipe entraria, coletaria as informações necessárias e sairia como vultos mesclados nas sombras da madrugada sem levantar nenhuma suspeita dos traficantes armados até os dentes. Era uma ação tão fácil quanto roubar o doce de uma criança. Entretanto, nenhum deles estavam prontos para os gritos.
Por um segundo, os dedos dela se fecharam com mais força entorno da semiautomática, seu corpo congelando no meio do escritório luxuoso.
— Capitã — a voz de um de seus homens fez o receptor em seu ouvido crepitar —, precisamos dar o fora daqui. Agora.
Ela sabia disso. Precisavam sair dali antes que os russos percebessem o silêncio dos guardas que deveriam estar protegendo o perímetro do jardim. Seria considerado uma falha gravíssima de protocolo se um deles fizesse um movimento fora do planejamento que haviam estudados exaustivamente nas últimas semanas. Nenhum soldado da equipe clandestina das Forças Especiais cometia um erro, a não ser que estivesse disposto a pagar com sua própria vida por ele.
Os gritos continuaram ecoando, rasgando o silêncio da noite como lâminas. Ela sentiu como se estivessem estripando seu peito quando captou o choro de uma criança vindo de algum lugar do andar de cima.
— Capitã?
Não foi necessário nem um segundo a mais para tomar sua decisão. Dane-se o protocolo. Ela resolveria as coisas com o Comandante mais tarde.
— Mudança de planos — disse contra o fone preso na lapela de seu uniforme. — Irei atrair os russos para os jardins enquanto vocês realizam o resgate dos reféns e fazem a evacuação pelos fundos.
Seus homens começaram a xingar.
— Essa não foi a ordem que recebemos do Comandante! — um deles pareceu rugir contra o fone.
— É a minha ordem — ela retrucou severamente. — Você pode pedir transferência para outra unidade se estiver insatisfeito com a forma que lidero esta equipe, soldado.
— Você está louca?!
— Isso é suicídio, porra!
— O tempo está passando rapazes, podemos ficar aqui a noite toda discutindo ou podemos mover nossos traseiros — ela já estava entrando em ação, verificando o pente da arma. — Dividam-se em dois grupos. Um se encarregará de levar os reféns para um lugar seguro, enquanto o outro se ocupa de passar as informações para Kowalski. 
Ela já estava a um passo da porta quando uma mão pousou em seu ombro, detendo-a.
— Irei com você, capitã.
— Estamos em um número limitado e não sabemos com quantos reféns estamos lidando. Vocês vão precisar estar com a atenção redobrada e de todo o apoio que puderem dar uns aos outros.
— E quem estará cobrindo as suas costas?
Ela tinha uma resposta afiada na ponta da língua para isso, mas levando em consideração o clima pesado que pairava entre eles, preferiu guardá-la para si. Passou os olhos rapidamente por todos os homens que lutaram ao seu lado nos últimos meses, oferecendo uma lealdade irrefutável e uma força de apoio letal. Caminhantes fantasmas acostumados a lidar com a realidade no submundo.
E haviam confiando nela para liderá-los. Não foi necessário provar seu valor ou sua competência em campo. A partir do momento em que escolhera abandonar tudo o que amava e mergulhar em uma batalha que acreditava estar sendo a favor dos inocentes, automaticamente se tornara igual perante os olhos de todos. Sacríficos são medidos por coragem, e ela havia provado o seu valor no exato momento em que aceitara entrar no mesmo barco que eles para combater o inferno.
— Se sempre desistíssemos quando as coisas ficassem complicadas, jamais conseguiríamos realizar algo que valesse a pena — mesmo usando uma máscara, seus olhos emitiram um brilho determinado.
A mão em seu ombro apertou.
— Não deixe que esses bastardos a peguem, capitã.
Assentido firmemente em uma despedida, ela esgueirou-se pelas sombras do corredor, caminhando silenciosamente até aproximar-se do hall da entrada. Observou o movimento de alguns russos, examinando suas posições antes de finalmente agir.
Atirou a granada LRAD[1], e quando o som ensurdecedor da explosão deixou todos momentaneamente desnorteados, correu através do hall, atirando nos traficantes com precisão. Dois homens no andar de cima tiveram suas testas perfuradas e giraram por cima do corrimão, despencando no chão. O sangue deles escorrendo pela superfície de mármore.
Foi quando o pandemônio começou.
Ela deslizou para detrás de uma pilastra e trocou o pente da arma antes de ser alvo de uma chuva de tiros e gritos enfurecidos. Lascas de cimento voaram para todos os lados, poeira branca sobrevoando ao redor como uma neblina. Quando ouviu o som dos russos recarregando as metralhadoras, virou com uma velocidade impressionante e mirou na corrente do enorme lustre. O lustre despencou com a força de uma detonação de cristais que fez todos recuarem, dando-lhe o tempo necessário para sair correndo em direção aos jardins.
Saltando pela janela, deparou-se com um guarda na varanda, a arma erguida na linha de seus olhos. Sem parar para tomar um fôlego, ela empurrou o braço dele para o lado ao mesmo tempo em que a arma disparou, a bala passou de raspão ao lado de sua cabeça. Golpeou o homem na garganta com um soco. Ele sufocou, dando-lhe a oportunidade perfeita para desarmá-lo. Girando a arma em sua mão, ela mirou e atirou sem hesitar.
O inferno foi estabelecido em questão de segundos. Berros furiosos misturavam-se com gritos femininos enquanto uma guerra de tiros era estabelecida dentro da mansão. Ela olhou ao redor quando ouviu os passos dos russos se aproximando. Com a mente a mil por hora, decidiu percorrer o gramado até a parte arborizada.
Tinha acabado de pular a estátua de um anão de jardim quando os malditos cachorros apareceram.
Cinco rottweilers dispararam em sua direção, os dentes à mostra e rosnando furiosamente. Ela sentiu o peso da arma na mão. Seu treinamento havia a preparado para eliminar todos os obstáculos que se aparecessem em seu caminho. Entretanto, o pouco de dignidade que ainda restava em sua alma a impedia severamente de matar animais.
O receptor em seu ouvido chiou.
— Evacuação realizada, as reféns estão a salvo.
— Temos algum ferido?
— Hook levou um tiro no traseiro...
— Foi na perna, porra! — exclamou Hook antes de soltar um gemido doloroso. — Você precisa aprender a controlar essa sua atração pela minha bunda, Dallas.
— Você deveria tratar com mais respeito o cara que vai brincar de médico com você daqui a pouco.
— Foda-se. Essa vai ser a sua desculpa para tirar as minhas calças?
— Se os idiotas já terminaram as preliminares, eu gostaria de informar que já estamos a caminho do ponto de encontro para entregar as informações que conseguimos. — interrompeu Kamal, seu forte sotaque árabe fluindo pelos fones — Capitã? A senhora está bem?
O abrupto silêncio em seu receptor elevou uma tensão quase palpável dentro de sua cabeça. Ela sabia que eles estavam esperando por uma resposta, um sinal de que estivesse viva ou um pedido de ajuda que atenderiam imediatamente. E ela não podia fazer isso. Não poderia colocá-los novamente em risco. Já haviam quebrado o protocolo de evasão uma vez, não haveria uma segunda.
A missão estava comprida.
Seu silêncio significava que estava morta.
Com cuidado, desligou o receptor de comunicação. Os cachorros iriam estraçalhar sua garganta antes que chegasse aos portões, e toda a propriedade era cercada por fios de eletricidade de alta tensão.
Não havia nenhuma saída.
Virando-se lentamente para não alarmar os cachorros, observou a fumaça saindo das janelas da mansão e os traficantes vindo em sua direção como uma alcateia de lobos famintos. Algo devia ter ativado o sistema de segurança contra incêndios, porque os irrigadores começaram a esguichar água por todo o perímetro do jardim.
Era difícil respirar com a máscara molhada e, com o acumulo de água ao redor dos olhos, não foi capaz de ver quando os russos caíram sobre ela com uma fúria descontrolada. Os primeiros socos a acertaram na cabeça em golpes tão fortes que quase a fizeram perder os sentidos. O sangue estava começando a obstruir sua garganta quando acertaram sua coxa com um chute que provavelmente teria causado um ferimento exposto se não fosse pela resistência do uniforme, mas foi o suficiente para fazê-la perder o equilíbrio e cair de joelhos.
Mais de dez homens a cercaram, armas apontadas em sua direção. Ela ergueu os braços em sinal de rendição, ao mesmo tempo em que prestava a atenção na conversa furiosa que acontecia ao seu redor. O que parecia ser o líder caminhou até ela e arrancou sua máscara. Os xingamentos pararam quando seus cabelos ruivos foram revelados, juntos com o sorriso desdenhoso que curvava seus lábios feridos.
Um novo soco golpeou seu maxilar antes que uma mão agarrasse seu cabelo e puxasse sua cabeça para trás, obrigando-a a encarar um par de olhos cruéis.
— Aproveite enquanto ainda é capaz de respirar, cadela, você não estará sorrindo quando começarmos a arrancar seus dentes.
Ela conteve a vontade de cuspir sangue na cara do bastardo. Após viver dois anos presenciando a podridão da raça humana, dificilmente algo seria capaz de intimidá-la. O comunicador preso na cintura do traficante chiou e uma voz grossa começou a ditar ordens. Imobilizaram seus braços e a arrastaram até o portão da mansão onde havia uma van preta estacionada.
Um homem segurando uma AK-47 jogou um tecido preto para o russo que a segurava. Após ser vendada, jogaram-na na parte de trás da van e o baque das portas sendo fechadas quase a fizeram estremecer.
Novas mãos a agarraram e os dedos do estranho quase perfuraram sua pele quando a puxaram para trás até colidir contra um peito masculino.  
— Comece a rezar, vadia — o hálito azedo a fez franzir o nariz. — Você vai precisar de toda a fé que tiver para conseguir suportar o que está por vir.
Ela tinha sérias dúvidas de que algumas orações seriam o suficiente para salvá-la. Dificilmente o Todo Poderoso daria atenção ao pedido de alguém que havia vendido sua alma ao diabo.
Ela estava por conta própria.


[1] Granada de som. 

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