Prólogo - Um Refúgio no Paraíso

19:07:00 1 Comments A+ a-


Prólogo
Ela estava morta.
E não poderia ter imaginado um dia melhor para ser enterrada.
Havia algo de poético em assistir ao próprio funeral, principalmente em uma manhã de outono com um belo céu azul e uma brisa fresca que carregava o aroma suave das flores do cemitério.
Simplesmente encantador.
Mas Katherine O’Connell sabia que não havia nada de poético em seu sacrifício. Não havia honra em sua decisão de mentir para as pessoas mais importantes de sua vida, e era inútil tentar enganar a si mesma dizendo que estava sendo guiada por um puro ato de nobreza. O medo jamais seria sinônimo de glória, e ela foi capaz de sentir cada parte de sua alma petrificar com horror ao descobrir que seus inimigos estavam farejando entorno de sua família para tentar capturá-la.
Quando há uma disputa entre os mais poderosos carteis de drogas do mundo pela sua cabeça, existem apenas duas opções: lutar e correr o risco de perder tudo o que ama, ou morrer sozinha.
Kate escolheu a segunda opção.
A ideia de forjar a própria morte lhe parecera brilhante no início, mas ao observar os quatro homens parados ao redor de um caixão vazio, fez com que a realidade de tudo o que estava acontecesse se chocasse contra ela com uma força demolidora. A dor de sua decisão estava corroendo-a por dentro como um espectro que sugava o calor de seu corpo até transformá-la em uma casca vazia e seca.
Era tarde demais para voltar atrás e tentar escolher um caminho que não a levasse direto para uma rede intermináveis de mentiras. Sua única fonte de consolo era saber que estava deixando sua família à salvo.
Tudo o que estava fazendo era por eles, e para eles.
Seu treinamento militar a tinha moldando arduamente até atingir o nível de um soldado implacável. Seus superiores eliminaram suas fraquezas e a obrigaram a revestir seus ossos com grossas camadas de aço para sobreviver. Porém, nada em seus vinte e sete anos tinha sido capaz de endurecê-la o suficiente para poder lidar com aquela devassidão que crescia em seu peito. Era como estivesse sendo empurrada para a beira de um precipício e não houvesse ninguém para estender-lhe a mão.
 O preço da solidão era alto demais.
Deveria ter dado atenção ao seu lado racional e ignorado os sonhos ingênuos em seu coração. Sua luta para proteger os mais fracos, a vontade de fazer a diferença no mundo e garantir um futuro pacífico e brilhante para as futuras gerações a cegaram completamente, e no meio de um jogo entre gigantes, fora a única a perder.
Pelo menos ela estava recebendo uma lápide com o seu nome em vão. Ela não tinha mais nada a perder, transformou-se em uma mera figura anônima em uma multidão de desconhecidos, e isso lhe oferecia a liberdade de transitar pelo submundo sem levantar suspeitas. Trabalhar como uma agente fantasma era a vantagem perfeita que precisava para começar a caçar os desgraçados que a jogaram no inferno.  
Ela não possuía mais um rosto, um nome ou uma vida.
Ela não era nada.
Suas únicas preocupações agora era manter-se longe do radar da máfia italiana, encarar missões clandestinas, destruir cartéis de cocaína e testar a própria capacidade de proteger a si mesma.
E tudo ficaria bem. Mentiu, e continuaria mentindo todas as vezes que abrisse os olhos, porque ela precisava desesperadamente acreditar nessas palavras com a mesma necessidade que precisava respirar.
Camuflada nas sombras de um carvalho, permitiu-se dize adeus uma última vez para os quatro homens que formavam o seu mundo inteiro. O padre encerrou o discurso religioso, fechou a bíblia e saiu lentamente. Um pesado silêncio caiu entre os homens. Kate não pode deixar de reparar a impressionante imagem que eles formavam com seus ternos escuros, desprendendo uma energia de poder e perigo que parecia obscurecer os raios do sol. Cada um segurava uma rosa vermelha de cabo longo, completamente estáticos enquanto observavam o caixão ir descendo para a cova.
 Wade foi quem fez o primeiro movimento, seu rosto tão tenso quanto uma rocha. Conversar com as paredes sempre fora mais divertido do que tentar iniciar uma conversa com seu irmão mais velho. Por experiência própria, Kate sabia que ele tinha um sério problema de interação social. As pessoas rapidamente se afastavam quando se deparavam com a imagem de um homem de quase dois metros de altura, cabeça raspada, ombros largos e braços tão fortes quanto toras de madeira. Seus olhos castanhos eram frios, distantes e imparciais, e quando abria a boca, normalmente era para dizer algo restrito. Ou grunhir.
Wade não era um homem carinhoso ou agradável de se olhar graças as diversas cicatrizes que cobriam seu rosto por causa dos estilhaços de uma explosão que o atingiu em uma missão no Afeganistão, mas Kate jamais encontrara alguém com um instinto protetor tão poderoso quanto o dele. Era como ter a força da natureza protegendo-a incansavelmente da crueldade do mundo.
Poucas pessoas eram capazes de compreender as diversas faces do silêncio dele, mas Kate conseguia ler perfeitamente sua postura corporal. Wade fez o sinal da cruz e voltou para sua posição inicial, seu ombro roçando contra o de Samuel em uma demonstração de apoio.
Sam caminhou até a cova, e diferente dela e de Wade que tinham herdado a beleza irlandesa de seu pai com cabelos ruivos e olhos castanhos, seu irmão do meio nasceu com a elegância angelical do lado materno. Com cristalinos olhos azuis e cabelos loiros roçando na altura dos ombros, Sam tinha o corpo esbelto e tonificado como o de um nadador. Seu rosto tão perfeitamente simétrico sempre fizera Kate pensar nas belas esculturas renascentistas.
Infelizmente, era uma pena que a beleza impressionante de Sam fosse igualmente proporcional à sua arrogância. Kate apostaria sua mão direita de que ele não era capaz de lembrar o nome completo de duas mulheres com quem já passara a noite, um fato bastante esclarecedor de sua vida amorosa tão movimentada quanto uma porta giratória.
Porém, ela sabia que a maior qualidade de Sam não estava em seu sorriso destruidor de calcinhas, mas em sua inacreditável habilidade de ler as emoções das pessoas. Ele era como um para-raios, captando todos os tipos de sentimentos que pairavam ao seu redor. Kate sabia melhor do que ninguém como um abraço de Sam era capaz de curar qualquer ferida emocional. Ele era espontâneo, alegre, extrovertido. E ao ver como as mãos de um dos snipers mais perigosos do mundo tremiam ligeiramente quando jogou a rosa sobre o caixão, a fez se encolher.
Kate precisou tralhar uma batalha interna para controlar toda a culpa que contaminava seu corpo como um veneno, e a escuridão dentro de si piorou ainda mais quando Samuel colocou a mão no ombro de seu pai. Arthur caiu de joelhos sobre a terra úmida, seus ombros curvados como se estivesse sendo puxado para unir-se ao caixão de sua única filha que estava sendo posicionado para descansar ao lado do túmulo de sua mãe que falecera após uma longa luta contra o câncer anos atrás. 
Arthur levou a rosa aos lábios e pareceu murmurar uma oração antes de jogá-la. Quando se colocou entre os filhos, os três O’Connell encararam o quarto homem parado na ponta da sepultura.
Foi naquele momento que Kate sentiu seu autocontrole vacilar pela primeira vez, como uma fina corda bamba que estava prestes a arrebentar. Ela jamais fora uma garota que alimentasse o sonho de um dia encontrar o príncipe encantado e viver um conto de fadas. Suas perspectivas sempre foram muito maduras, e seus ideais altruístas perfeitamente detalhados. Ela sonhava com um mundo melhor, não com um homem lhe trazendo flores e promessas coloridas, até o dia que Marco Castellari se mudou para a casa do lado e tornou-se o melhor amigo de Wade.
Crescer alimentando fortes sentimentos pelo seu vizinho não fora fácil, principalmente quando Marco havia tornado seu objetivo de vida atormentá-la incansavelmente a cada oportunidade. Ela o odiou profundamente no começo. Odiou seu nariz arrogante que tivera o prazer de quebrar uma vez com um soco certeiro, sua linguagem sarcástica e charmosa ao mesmo tempo porque ele jamais perdera o sotaque de sua descendência italiana, seus olhos verdes incrivelmente intensos e a maneira sobrenatural que ele sempre parecia saber o que ela estava pensando.
Ele se transformou na pedra em seu sapato, o desgraçado que desestruturou todos os seus planos cuidadosamente organizados, o infeliz que colocou sua vida de ponta cabeça.
Ele era o anticristo.
E o amor de sua vida.
Foi como ser carregada por uma onda furiosa que a sugava cada vez mais para o fundo do oceano à medida que ia percebendo a mudança de seus sentimentos por Marco. Ela jamais seria capaz de dizer o exato momento em que tudo mudou e seu vizinho irritante passou a atormentá-la em seus sonhos, a fazê-la corar como uma idiota com um único olhar, ou a fazer desejar ser a responsável por todos os seus sorrisos.
Ele dominou o seu coração e fez com que cada batida gritasse seu nome incansavelmente, até que tudo dentro dela fosse um túnel que ecoava roucamente para o vazio. Ela estava perdendo as esperanças de um dia tornar-se algo a mais para ele, quando Marco pareceu finalmente ouvir todos os seus apelos silenciosos, e milagrosamente, o coração dele passou a chamá-la com a mesma necessidade. Com a mesma urgência.
Com o mesmo amor.
E agora ela estava abandonando o homem que a ensinou a acreditar em conto de fadas.
Kate observou a maneira como Marco permanecia imóvel, mergulhado em um silêncio fúnebre enquanto encarava fixamente o caixão ser coberto por terra. Seus olhos captaram o momento em que ele amassou o delicado botão de rosa entre os dedos antes de libertar as pétalas despedaçadas sobre a grama, formando um pontilhado vermelho ao lado de seus sapatos.
Marco virou-se para Arthur, inclinou a cabeça em sinal de respeito e começou a caminhar até uma BMW estacionada do outro lado do gramado. Ele era a imagem impecável de um homem duro e inabalável, sua postura rígida, os olhos frios, e os passos seguros demais como se estivesse indo para alguma missão.
Tudo sobre ele era indecifrável. Era como admirar uma sombra mesclada na paisagem alaranjada do cemitério, algo sombrio e letal que vagava por um ambiente repleto de luz.
Ela jamais o vira tão bonito.
E tão destruído.
Kate levou uma mão ao peito, tentando sufocar as batidas desesperadas de seu coração. Ela queria gritar por ele, correr para os seus braços e abraçá-lo até que seus corpos se fundissem um no outro.
A força do seu desejo enviou uma ordem para as suas pernas, e antes que pudesse se deter, Kate deu um passo à frente, a adrenalina percorrendo seu sangue. Sua respiração rasa e rápida. Com um choque de realidade, ela enterrou suas botas na grama, detendo-se antes que cometesse uma loucura. Não podia fazer isso. Não podia estragar todo o seu disfarce.
Fora um erro ter ido ali.
Ela precisava ir embora.
Agora.
Seu pai ficaria bem com o passar do tempo. Wade e Samuel superariam a sua morte, e Marco encontraria outra mulher para amar. Uma boa moça capaz de fazê-lo sorrir novamente. Eles se casariam, formariam uma linda família e tudo sobre Katherine O’Connell seria esquecido.
Inconscientemente, Kate buscou por consolo no delicado anel de noivado que levava pendurado em uma corrente, e com uma lentidão agonizante, deu as costas para a sua antiga vida e caminhou para o precário carro do outro lado da calçada. Ajeitou o boné, subiu a lapela da jaqueta e colocou os óculos escuros que serviam mais para esconder suas lágrimas do que seu rosto.
Foi então que seus sentidos de alerta soaram, como uma sirene vermelha piscando loucamente. Girou o pescoço cuidadosamente e, pelo canto dos olhos, notou que Marco estava parado ao lado do carro, uma mão sobre o capô e a outra segurando a porta aberta. Seus ombros tensos denunciavam uma postura de soldado pronto para entrar em ação.
No momento em que ele começou a virar em sua direção, Kate pulou para dentro do Chevrolet e agradeceu mentalmente por aquela lata velha ter os vidros escuros. Deu a partida e, quando passou pelos portões do cemitério, lançou um último olhar para o espelho retrovisor para certificar-se de que não estava sendo seguida. Seus olhos se chocaram com a imagem de Marco ainda verificando ao redor, as sobrancelhas unidas em um vínculo desconfiado. Por fim, ele apenas balançou a cabeça e entrou na BMW.
Kate soltou um longo suspiro.
Estava feito.
Agora ela só precisava permanecer morta.

1 comentários:

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Mary Oliveira
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14 de janeiro de 2017 às 19:33 delete

Gente, gente, gente..................... socorro <3
como pode?? a cada parágrafo eu só quero esse livro mais e mais???
tem tudo o que amo:
mocinha forte
mocinho foda (mistura de badboy com coração - numa parte bem profunda - de príncipe) SURTEI AQUI!!!!
homis muito fodas (SOCORRO. SURTEI AQUI DE NOVO)
Uma estória NADA CLICHÊ
Um tema que acho MUITO relevante e maravilhoso para ser explorado, retratado e mostrado para o mundo, porque SIM, o mundo precisa abrir os olhos para isso.
só pode dizer que amei. quero mais. preciso de mais.
vou ali ler o capítulo um. obrigada, de nada <3
Beijos e meus sinceros parabéns à autora. Bicha, tu é foda (a escrita também) <3

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