Prólogo - Um Refúgio no Paraíso
Prólogo
Ela estava
morta.
E não poderia
ter imaginado um dia melhor para ser enterrada.
Havia algo de
poético em assistir ao próprio funeral, principalmente em uma manhã de outono
com um belo céu azul e uma brisa fresca que carregava o aroma suave das flores
do cemitério.
Simplesmente
encantador.
Mas Katherine
O’Connell sabia que não havia nada de poético em seu sacrifício. Não havia
honra em sua decisão de mentir para as pessoas mais importantes de sua vida, e era
inútil tentar enganar a si mesma dizendo que estava sendo guiada por um puro ato
de nobreza. O medo jamais seria sinônimo de glória, e ela foi capaz de sentir
cada parte de sua alma petrificar com horror ao descobrir que seus inimigos
estavam farejando entorno de sua família para tentar capturá-la.
Quando há uma
disputa entre os mais poderosos carteis de drogas do mundo pela sua cabeça,
existem apenas duas opções: lutar e correr o risco de perder tudo o que ama, ou
morrer sozinha.
Kate escolheu a
segunda opção.
A ideia de
forjar a própria morte lhe parecera brilhante no início, mas ao observar os
quatro homens parados ao redor de um caixão vazio, fez com que a realidade de
tudo o que estava acontecesse se chocasse contra ela com uma força demolidora.
A dor de sua decisão estava corroendo-a por dentro como um espectro que sugava
o calor de seu corpo até transformá-la em uma casca vazia e seca.
Era tarde demais
para voltar atrás e tentar escolher um caminho que não a levasse direto para
uma rede intermináveis de mentiras. Sua única fonte de consolo era saber que
estava deixando sua família à salvo.
Tudo o que
estava fazendo era por eles, e para eles.
Seu treinamento
militar a tinha moldando arduamente até atingir o nível de um soldado implacável.
Seus superiores eliminaram suas fraquezas e a obrigaram a revestir seus ossos
com grossas camadas de aço para sobreviver. Porém, nada em seus vinte e sete
anos tinha sido capaz de endurecê-la o suficiente para poder lidar com aquela
devassidão que crescia em seu peito. Era como estivesse sendo empurrada para a
beira de um precipício e não houvesse ninguém para estender-lhe a mão.
O preço da solidão era alto demais.
Deveria ter dado
atenção ao seu lado racional e ignorado os sonhos ingênuos em seu coração. Sua
luta para proteger os mais fracos, a vontade de fazer a diferença no mundo e
garantir um futuro pacífico e brilhante para as futuras gerações a cegaram
completamente, e no meio de um jogo entre gigantes, fora a única a perder.
Pelo menos ela estava
recebendo uma lápide com o seu nome em vão. Ela não tinha mais nada a perder,
transformou-se em uma mera figura anônima em uma multidão de desconhecidos, e
isso lhe oferecia a liberdade de transitar pelo submundo sem levantar
suspeitas. Trabalhar como uma agente fantasma era a vantagem perfeita que
precisava para começar a caçar os desgraçados que a jogaram no inferno.
Ela não possuía
mais um rosto, um nome ou uma vida.
Ela não era
nada.
Suas únicas
preocupações agora era manter-se longe do radar da máfia italiana, encarar
missões clandestinas, destruir cartéis de cocaína e testar a própria capacidade
de proteger a si mesma.
E tudo ficaria bem. Mentiu, e
continuaria mentindo todas as vezes que abrisse os olhos, porque ela precisava
desesperadamente acreditar nessas palavras com a mesma necessidade que
precisava respirar.
Camuflada nas
sombras de um carvalho, permitiu-se dize adeus uma última vez para os quatro
homens que formavam o seu mundo inteiro. O padre encerrou o discurso religioso,
fechou a bíblia e saiu lentamente. Um pesado silêncio caiu entre os homens. Kate
não pode deixar de reparar a impressionante imagem que eles formavam com seus
ternos escuros, desprendendo uma energia de poder e perigo que parecia
obscurecer os raios do sol. Cada um segurava uma rosa vermelha de cabo longo,
completamente estáticos enquanto observavam o caixão ir descendo para a cova.
Wade foi quem fez o primeiro movimento, seu
rosto tão tenso quanto uma rocha. Conversar com as paredes sempre fora mais
divertido do que tentar iniciar uma conversa com seu irmão mais velho. Por
experiência própria, Kate sabia que ele tinha um sério problema de interação
social. As pessoas rapidamente se afastavam quando se deparavam com a imagem de
um homem de quase dois metros de altura, cabeça raspada, ombros largos e braços
tão fortes quanto toras de madeira. Seus olhos castanhos eram frios, distantes
e imparciais, e quando abria a boca, normalmente era para dizer algo restrito.
Ou grunhir.
Wade não era um
homem carinhoso ou agradável de se olhar graças as diversas cicatrizes que
cobriam seu rosto por causa dos estilhaços de uma explosão que o atingiu em uma
missão no Afeganistão, mas Kate jamais encontrara alguém com um instinto
protetor tão poderoso quanto o dele. Era como ter a força da natureza
protegendo-a incansavelmente da crueldade do mundo.
Poucas pessoas
eram capazes de compreender as diversas faces do silêncio dele, mas Kate
conseguia ler perfeitamente sua postura corporal. Wade fez o sinal da cruz e
voltou para sua posição inicial, seu ombro roçando contra o de Samuel em uma
demonstração de apoio.
Sam caminhou até
a cova, e diferente dela e de Wade que tinham herdado a beleza irlandesa de seu
pai com cabelos ruivos e olhos castanhos, seu irmão do meio nasceu com a
elegância angelical do lado materno. Com cristalinos olhos azuis e cabelos
loiros roçando na altura dos ombros, Sam tinha o corpo esbelto e tonificado
como o de um nadador. Seu rosto tão perfeitamente simétrico sempre fizera Kate
pensar nas belas esculturas renascentistas.
Infelizmente, era
uma pena que a beleza impressionante de Sam fosse igualmente proporcional à sua
arrogância. Kate apostaria sua mão direita de que ele não era capaz de lembrar
o nome completo de duas mulheres com quem já passara a noite, um fato bastante
esclarecedor de sua vida amorosa tão movimentada quanto uma porta giratória.
Porém, ela sabia
que a maior qualidade de Sam não estava em seu sorriso destruidor de calcinhas,
mas em sua inacreditável habilidade de ler as emoções das pessoas. Ele era como
um para-raios, captando todos os tipos de sentimentos que pairavam ao seu
redor. Kate sabia melhor do que ninguém como um abraço de Sam era capaz de
curar qualquer ferida emocional. Ele era espontâneo, alegre, extrovertido. E ao
ver como as mãos de um dos snipers
mais perigosos do mundo tremiam ligeiramente quando jogou a rosa sobre o
caixão, a fez se encolher.
Kate precisou
tralhar uma batalha interna para controlar toda a culpa que contaminava seu
corpo como um veneno, e a escuridão dentro de si piorou ainda mais quando
Samuel colocou a mão no ombro de seu pai. Arthur caiu de joelhos sobre a terra
úmida, seus ombros curvados como se estivesse sendo puxado para unir-se ao
caixão de sua única filha que estava sendo posicionado para descansar ao lado
do túmulo de sua mãe que falecera após uma longa luta contra o câncer anos
atrás.
Arthur levou a
rosa aos lábios e pareceu murmurar uma oração antes de jogá-la. Quando se
colocou entre os filhos, os três O’Connell encararam o quarto homem parado na
ponta da sepultura.
Foi naquele
momento que Kate sentiu seu autocontrole vacilar pela primeira vez, como uma
fina corda bamba que estava prestes a arrebentar. Ela jamais fora uma garota
que alimentasse o sonho de um dia encontrar o príncipe encantado e viver um
conto de fadas. Suas perspectivas sempre foram muito maduras, e seus ideais altruístas
perfeitamente detalhados. Ela sonhava com um mundo melhor, não com um homem lhe
trazendo flores e promessas coloridas, até o dia que Marco Castellari se mudou
para a casa do lado e tornou-se o melhor amigo de Wade.
Crescer
alimentando fortes sentimentos pelo seu vizinho não fora fácil, principalmente
quando Marco havia tornado seu objetivo de vida atormentá-la incansavelmente a
cada oportunidade. Ela o odiou profundamente no começo. Odiou seu nariz
arrogante que tivera o prazer de quebrar uma vez com um soco certeiro, sua
linguagem sarcástica e charmosa ao mesmo tempo porque ele jamais perdera o
sotaque de sua descendência italiana, seus olhos verdes incrivelmente intensos
e a maneira sobrenatural que ele sempre parecia saber o que ela estava
pensando.
Ele se transformou
na pedra em seu sapato, o desgraçado que desestruturou todos os seus planos
cuidadosamente organizados, o infeliz que colocou sua vida de ponta cabeça.
Ele era o
anticristo.
E o amor de sua
vida.
Foi como ser
carregada por uma onda furiosa que a sugava cada vez mais para o fundo do
oceano à medida que ia percebendo a mudança de seus sentimentos por Marco. Ela
jamais seria capaz de dizer o exato momento em que tudo mudou e seu vizinho
irritante passou a atormentá-la em seus sonhos, a fazê-la corar como uma idiota
com um único olhar, ou a fazer desejar ser a responsável por todos os seus
sorrisos.
Ele dominou o
seu coração e fez com que cada batida gritasse seu nome incansavelmente, até
que tudo dentro dela fosse um túnel que ecoava roucamente para o vazio. Ela
estava perdendo as esperanças de um dia tornar-se algo a mais para ele, quando
Marco pareceu finalmente ouvir todos os seus apelos silenciosos, e
milagrosamente, o coração dele passou a chamá-la com a mesma necessidade. Com a
mesma urgência.
Com o mesmo
amor.
E agora ela
estava abandonando o homem que a ensinou a acreditar em conto de fadas.
Kate observou a
maneira como Marco permanecia imóvel, mergulhado em um silêncio fúnebre enquanto
encarava fixamente o caixão ser coberto por terra. Seus olhos captaram o
momento em que ele amassou o delicado botão de rosa entre os dedos antes de libertar
as pétalas despedaçadas sobre a grama, formando um pontilhado vermelho ao lado
de seus sapatos.
Marco virou-se
para Arthur, inclinou a cabeça em sinal de respeito e começou a caminhar até
uma BMW estacionada do outro lado do gramado. Ele era a imagem impecável de um
homem duro e inabalável, sua postura rígida, os olhos frios, e os passos
seguros demais como se estivesse indo para alguma missão.
Tudo sobre ele
era indecifrável. Era como admirar uma sombra mesclada na paisagem alaranjada
do cemitério, algo sombrio e letal que vagava por um ambiente repleto de luz.
Ela jamais o
vira tão bonito.
E tão destruído.
Kate levou uma
mão ao peito, tentando sufocar as batidas desesperadas de seu coração. Ela
queria gritar por ele, correr para os seus braços e abraçá-lo até que seus
corpos se fundissem um no outro.
A força do seu
desejo enviou uma ordem para as suas pernas, e antes que pudesse se deter, Kate
deu um passo à frente, a adrenalina percorrendo seu sangue. Sua respiração rasa
e rápida. Com um choque de realidade, ela enterrou suas botas na grama,
detendo-se antes que cometesse uma loucura. Não podia fazer isso. Não podia
estragar todo o seu disfarce.
Fora um erro ter
ido ali.
Ela precisava ir
embora.
Agora.
Seu pai ficaria
bem com o passar do tempo. Wade e Samuel superariam a sua morte, e Marco
encontraria outra mulher para amar. Uma boa moça capaz de fazê-lo sorrir
novamente. Eles se casariam, formariam uma linda família e tudo sobre Katherine
O’Connell seria esquecido.
Inconscientemente,
Kate buscou por consolo no delicado anel de noivado que levava pendurado em uma
corrente, e com uma lentidão agonizante, deu as costas para a sua antiga vida e
caminhou para o precário carro do outro lado da calçada. Ajeitou o boné, subiu
a lapela da jaqueta e colocou os óculos escuros que serviam mais para esconder
suas lágrimas do que seu rosto.
Foi então que
seus sentidos de alerta soaram, como uma sirene vermelha piscando loucamente. Girou
o pescoço cuidadosamente e, pelo canto dos olhos, notou que Marco estava parado
ao lado do carro, uma mão sobre o capô e a outra segurando a porta aberta. Seus
ombros tensos denunciavam uma postura de soldado pronto para entrar em ação.
No momento em
que ele começou a virar em sua direção, Kate pulou para dentro do Chevrolet e
agradeceu mentalmente por aquela lata velha ter os vidros escuros. Deu a
partida e, quando passou pelos portões do cemitério, lançou um último olhar
para o espelho retrovisor para certificar-se de que não estava sendo seguida. Seus
olhos se chocaram com a imagem de Marco ainda verificando ao redor, as
sobrancelhas unidas em um vínculo desconfiado. Por fim, ele apenas balançou a
cabeça e entrou na BMW.
Kate soltou um longo
suspiro.
Estava feito.
Agora ela só precisava
permanecer morta.
1 comentários:
Write comentáriosGente, gente, gente..................... socorro <3
Replycomo pode?? a cada parágrafo eu só quero esse livro mais e mais???
tem tudo o que amo:
mocinha forte
mocinho foda (mistura de badboy com coração - numa parte bem profunda - de príncipe) SURTEI AQUI!!!!
homis muito fodas (SOCORRO. SURTEI AQUI DE NOVO)
Uma estória NADA CLICHÊ
Um tema que acho MUITO relevante e maravilhoso para ser explorado, retratado e mostrado para o mundo, porque SIM, o mundo precisa abrir os olhos para isso.
só pode dizer que amei. quero mais. preciso de mais.
vou ali ler o capítulo um. obrigada, de nada <3
Beijos e meus sinceros parabéns à autora. Bicha, tu é foda (a escrita também) <3